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Recurso básico contra Covid-19, privatização da água no Brasil deve ampliar desigualdades
O Nordeste do Brasil vivenciou, ao longo de anos, problemas com relação à seca. Açudes foram cavados na esperança de acesso à água. No entanto, concentração dessa política criou a figura dos “Senhores da Água”. Na região, 70% do consumo de água são destinados ao agronegócio industrial.
Entre os anos de 2014 e 2016, a crise hídrica de São Paulo revelou que o processo de privatização da água no Brasil está avançando. O governo de São Paulo possui apenas 51% da administração de saneamento no estado. Empresas privadas controlam o restante. Na época da crise, regiões periféricas sofreram racionamento (“diminuição da pressão”, segundo o governo), enquanto os bairros nobres não sentiram mudanças no abastecimento.
Diante desse cenário, o pesquisador paraibano Flávio José Rocha esteve na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), neste mês de março, para realizar o minicurso “A privatização da água no Brasil”. Graduado e mestre pela UFPB, mudou-se para São Paulo e realizou doutorado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) e pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP).
Em entrevista à Assessoria de Comunicação Social (Ascom) da UFPB, Rocha defende o acesso à água como um direito humano, critica novo marco legal brasileiro sobre saneamento, elogia atuação de governantes brasileiros que isentaram população mais carente do pagamento de taxa diante da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).
Além disso, o pesquisador destaca a criação de uma "Nova Cultura da Água" e ressalta a importância de estudar autores brasileiros como Paulo Freire, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales, Milton Santos e Augusto Boal. Confira a entrevista:
Ascom: Primeiramente, gostaríamos que você nos contasse um pouco de sua trajetória e sobre o interesse no tema da privatização da água no Brasil.
Flávio José Rocha: Eu sou paraibano de Duas Estradas, a 124 km de João Pessoa, e conheço bem a questão da falta de água nas nossas casas. Desde muito cedo, fiz parte de pastorais e movimentos sociais. Sou formado em Comunicação Social, com habilitação em Relações Públicas, pela UFPB. Mudei para os Estados Unidos em 2001 e lá fiz um mestrado em Espiritualidade da Criação na Naropa University.
Ao retornar para João Pessoa, em 2004, comecei a trabalhar com educação ambiental e eco-espiritualidade. Senti a necessidade de aprofundar o meu conhecimento nesta área. Fui selecionado para o mestrado do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) da UFPB com pesquisa no campo da educação ambiental e concluí em 2010.
Ainda nos anos do mestrado, comecei a me interessar pela questão da transposição do rio São Francisco e sua real necessidade em uma região que estava recebendo grandes obras há cerca de 100 anos e continua enfrentando problemas com relação à água.
Mudei com a minha família para São Paulo, logo depois que concluí o mestrado no Prodema. Em 2011, ingressei no doutorado em Ciências Sociais da PUC de São Paulo, pesquisando a transposição do rio São Francisco. Adquiri um bom conhecimento sobre o projeto, inclusive viajando pelos canteiros da obra no interior e conhecendo as famílias que seriam impactadas diretamente pelos canais.
Na minha pesquisa, acabei me deparando com a questão de fundo, que é a privatização da água no Brasil. Isso me levou a um pós-doutorado na USP, pesquisando uma possível privatização da Sabesp, a Companhia de Água e Esgotos de São Paulo.
Continuo escrevendo sobre o tema e, no último dia 22 de março, lancei o e-book “Vendo água privatizada”, que pode ser acessado gratuitamente em página da internet, além de ser pesquisador do Grupo de Estudos Políticas Públicas e Gestão Participativa da USP.
Ascom: Que conhecimentos você acredita que a população brasileira tem sobre a privatização da água no país?
Flávio José Rocha: Quero começar dizendo que, de maneira alguma, eu sou contra a iniciativa privada. Seria uma loucura imaginar que o Estado deve ser responsável por tudo. Os negócios privados são necessários em várias áreas da economia.
No entanto, sou extremamente contra a água ser tratada como "um produto como qualquer outro do mundo dos negócios". Estamos falando de um elemento natural que sustenta a vida no planeta. Agora, para falar a verdade, privatização da água não é algo novo e ela sempre foi privatizada de alguma maneira por certos grupos que perceberam que possuir a água é ter poder econômico, político e militar.
No Nordeste, nós conhecemos esta história melhor do que qualquer outra região do país. Quem não lembra dos grandes açudes que foram cavados pelas pessoas vítimas do abandono governamental em grandes propriedades durante as estiagens? Veja que ironia, essas pessoas trabalhavam cavando os açudes na esperança de que, quando eles enchessem, elas teriam acesso àquela água. Aconteceu justamente o oposto em muitos casos. Na esperança de democratizar o acesso à água, elas estavam, sem saber, concentrando-a ainda mais e criando os Senhores da Água.
Também não é possível continuar gastando 70% da nossa água com o agronegócio industrial. Impossível repor os estoques, porque a natureza tem outro tempo, que não alcança a rapidez do consumo atual. Esse gasto também é privatização por parte de um ramo da economia que está tirando água de outros ramos. Nós falamos muito pouco sobre este assunto, porque “a conta ainda não chegou”. Mas parece que com o Projeto de Lei Federal 4162, que está no Congresso e que atualiza o marco legal do saneamento básico, não vai demorar muito.
Ascom: De que maneira seria possível a conscientização ambiental em uma nação como o Brasil?
Flávio José Rocha: Devemos trabalhar em várias frentes. A primeira é descolonizar os nossos desejos. Os nossos modelos de civilização são as classes médias estadunidense e europeia. Modelos insustentáveis quando falamos sobre a questão da água.
A segunda é trabalhar com as novas gerações. Elas precisam entender que tudo que elas consomem tem água envolvida na produção. A nossa população tem muito pouco conhecimento sobre água e há uma separação entre terra e água. Inclusive na vida acadêmica, há culpa sobre isto, porque as pessoas não associam uma à outra e não percebem os impactos mútuos.
Não dá para entender o porquê de não termos mais conhecimento sobre algo que é essencial para nos manter vivos. Muitas pessoas entendem mais de marcas de celular do que de tratamento de água, por exemplo. O que é mais importante para a vida? Quantos de nós sabemos como a nossa água é tratada pela Cagepa [Companhia de Água e Esgotos da Paraíba] e quais os produtos químicos usados para este tratamento?
Quantas doenças e mortes são causadas pela poluição da água no mundo com os rios sendo usados como depósitos de lixo? É isso que acontece quando não pensamos na água como um bem comum.
Ascom: Como a gente pode perceber as raízes do processo de privatização da água no Brasil?
Flávio José Rocha: Ficou muito claro com a crise hídrica de São Paulo há alguns anos [entre 2014 e 2016] que o processo de privatização da água no Brasil já está avançando bastante. O governo de São Paulo gerencia apenas 51% da Sabesp [Companhia de Saneamento Básico de São Paulo] e o restante é controlado por empresas privadas que ditam as regras comerciais.
Há pesquisas que estão sendo feitas por companheiros meus da USP sobre a questão da injustiça hídrica durante a crise, quando os bairros periféricos sofreram racionamento (chamado pelo governo paulista de “diminuição da pressão”), enquanto os bairros nobres não sentiram a diferença no abastecimento. Isso se deve a uma visão mercantilista sobre a água, que é tratada como um produto qualquer e não como um direito humano. Por isso, o perigo da privatização. Vai recebê-la quem pode por ela pagar. Esta é a lógica empresarial, goste-se ou não.
Para sobreviver, uma empresa precisa ter lucros. Se essa lógica acontece com a água, o resultado pode ser inimaginável em termos sanitários e de propagação de doenças. Veja que agora, durante a pandemia [do novo coronavírus], alguns governadores estão isentando pessoas que pagam a tarifa social, porque sabem da importância da água para diminuir a propagação do vírus. Isso é possível quando a água está sob o controle do Estado e não de uma empresa privada.
Como já disse, a água sempre foi privatizada de alguma forma por alguns grupos econômicos e políticos, a diferença é que agora ela está sendo privatizada como uma política de governo, que é quem deveria protegê-la.
Ascom: Em outros países, você tem conhecimento de procedimentos semelhantes?
Flávio José Rocha: A França concedeu os serviços de saneamento ainda nos anos 60 para empresas privadas, mas este modelo está falindo por lá. Paris já retomou o controle da sua água.
A Inglaterra privatizou os serviços, mas há queixas sobre o valor pago pelos usuários. O caso mais famoso é o da Bolívia, que culminou com a Guerra da Água em Cochabamba, deixando mais de 70 mortos.
No Brasil, temos o caso de São Paulo que, embora não seja uma privatização oficial, faz com que a empresa opere como uma empresa privada.
Há um outro aspecto que precisamos atentar que é a questão da soberania. O Brasil sozinho tem 12% da água doce do planeta. Nós queremos pessoas de fora mandando nesta riqueza natural toda? A privatização já começa a causar conflitos como o que aconteceu em Correntina, na Bahia. A população invadiu fazendas do agronegócio para impedir a irrigação, porque a água já não estava chegando nas casas. Imagine se agora, com o isolamento social, não tivéssemos águas nas nossas torneiras?
Ascom: Quais medidas do novo Marco Legal, em votação no Congresso Brasileiro, intensificarão a privatização da água?
Flávio José Rocha: O novo marco legal do saneamento é um grande retrocesso. Nunca fomos um país exemplar neste quesito, mas estávamos dando passos positivos com o Plansab [Plano Nacional de Saneamento Básico].
Agora, o interesse comercial sobre a água está vindo com muita força. Percebam que nunca se falou tanto de falta de saneamento na mídia como nos últimos três anos. É como se descobrissem isso somente agora, mas não foi por acaso. É para colocar na cabeça das pessoas que o Estado é incompetente e a única solução é esta, que está no Congresso, com o Projeto de Lei 4162: fortalecer o Mercado da Água.
O principal perigo é a abertura de licitação para os serviços gerando concorrência. A princípio, pode parecer uma coisa boa, mas a história mostra que não. O que acontecerá com os pequenos municípios que não dão lucros para as grandes empresas?
Apenas as grandes cidades são lucrativas e subvencionam o serviço para as pequenas, como acontece aqui na Paraíba e em outros estados. Se pensarmos que água tem que dar lucro, nada de errado. A questão é que estamos falando de algo que é essencial para a vida.
Ascom: Você relaciona Paulo Freire com a Educação Ambiental. Que pontos destacaria do pensamento dele no combate à privatização da água no Brasil?
Flávio José Rocha: Paulo Freire não tratou muito do tópico educação ambiental, mas basta ler sobre a sua vida para ver como a natureza foi parte essencial de sua formação quando criança em Pernambuco. A sua famosa frase sobre “fazer a leitura do mundo” bem pode ser uma referência ao meio ambiente também.
É óbvio que não existe uma “educação ambiental”, porque toda educação deve ser ambiental, já que não estamos separados da natureza. É uma visão antropocêntrica pensar que quando “educamos” uma pessoa formalmente, não estamos educando-a para o ambiente.
Não faz o menor sentido e hoje sabemos que uma educação ambiental que não é crítica ao atual modelo de desenvolvimento está, na verdade, deseducando.
Ascom: Na perspectiva freiriana, é necessária uma educação em prol da liberdade e não da dependência. Como fazer isso em um país colonizado?
Flávio José Rocha: Novamente, voltamos para a questão da decolonização dos nossos saberes e desejos. Veja o exemplo das universidades brasileiras e de como ainda muitos professores e professoras são reprodutores dos conhecimentos da Europa e dos Estados Unidos para se sentirem validados.
Quantos realmente estudam Paulo Freire, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales, Milton Santos ou Augusto Boal? São brasileiros estudados lá na Europa e nos Estados Unidos e rejeitados aqui, em seus próprios países.
É preciso que nos olhemos no espelho se quisermos ver a nossa própria imagem refletida, mesmo sabendo que não será a imagem desejada. Não que não devamos estudar autores de outros países, mas não como subalternos. Além disso, existem outros saberes no mundo que não estão confinados na vida acadêmica e que têm muito a nos ensinar.
Ascom: Cite as principais ações que seriam necessárias para inviabilizar esse processo de privatizar a água.
Flávio José Rocha: Sem dúvida, a primeira é o controle social. Nós não fomos educados para fiscalizar os nossos governos e parlamentares.
A segunda é criar o que vários pesquisadores deste tópico estão chamando de “Nova Cultura da Água”. Nesta nova perspectiva, a água não é só um direito, mas também tem diretos. Eu defendo que, quando poluímos os nossos rios, também estamos privatizando-os. Privatizar é privar e, quando um manancial é poluído por agrotóxicos, dejetos industriais e domésticos, isso priva outros grupos de usufruir daquele bem comum.
É preciso estar atento sobre o discurso neoliberal que prega a ineficiência do Estado, mas que agora, na crise do coronavírus, corre para pedir socorro a este mesmo Estado. É importante saber que, na nova configuração econômica neoliberal, as transnacionais preferem a societarização, as concessões ou as Parcerias Público-Privadas, as famosas PPPS, porque elas ficam com os lucros e deixam os prejuízos para os governos locais.
Na questão da água, mais de 30 milhões de brasileiros já recebem água em suas torneiras através de empresas privadas. É como se o Canadá inteiro tivesse privatizado a água.
Por último, devemos estar atento aos discursos da escassez e da guerra da água. Claro que temos problemas seríssimos no mundo inteiro de escassez, mas a solução apontada é sempre a privatização e nunca o cuidado com o bem comum. É começar a conversar nas nossas famílias, igrejas e grupos sobre este tema.
Ascom: Para finalizar, outros recursos do meio ambiente e públicos podem passar por procedimentos de privatização? Quais você percebe indo neste caminho?
Flávio José Rocha: Os parques nacionais já estão neste caminho e alguns já foram privatizados através de concessão deste governo. Claro que os defensores vão usar o argumento de ineficiência do Estado e que não foi uma privatização, mas uma concessão. A questão é que as empresas são concedidas por 25 ou 30 anos com possibilidade de renovação.
Conceder é ceder. No caso da água, é perder o poder sobre uma das coisas mais importantes para manter a vida de todos os seres vivos do planeta. Quero ressaltar que é uma questão de soberania para o país.
Jonas Lucas Vieira | Ascom/UFPB