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A DEMOCRATIZAÇÃO DA NAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL ATRAVÉS DO SUS NÃO SE RESTRINGE AO APRIMORAMENTO DO CONTROLE SOCIAL POR CONSELHOS E CONFERÊNCIAS DE SAÚDE

O debate sobre a participação popular na saúde, que vem ocorrendo amplamente em congressos, reuniões de serviço e publicações no campo da saúde coletiva, tem focado sua dimensão de reorientação do planejamento e da gestão das políticas de saúde.
publicado: 04/11/2019 11h24, última modificação: 05/11/2019 15h02

O debate sobre a participação popular na saúde, que vem ocorrendo amplamente em congressos, reuniões de serviço e publicações no campo da saúde coletiva, tem focado sua dimensão de reorientação do planejamento e da gestão das políticas de saúde. A ênfase principal têm sido as questões relativas ao fortalecimento e ao papel dos conselhos e conferências de saúde bem como às lutas sociais para ampliação dos recursos disponíveis. A participação da população em ações concretas de atenção à saúde tem sido discutida principalmente na perspectiva de mobilização e apoio para sua implementação ampliada nas comunidades em moldes previamente planejados pelos profissionais e gestores. Apesar de estas dimensões serem muito importantes, acredito estar sendo pouco valorizada a importância da participação popular na reorientação das práticas cotidianas de atenção à saúde.

A participação da população, e seus grupos organizados, na gestão dos serviços de saúde, principalmente através dos conselhos e conferências de saúde, representa um grande avanço no processo de democratização da sociedade brasileira e tem ajudado a pensar os caminhos de superação da democracia representativa, conquista ainda recente na América Latina. A sociedade não aceita mais apenas eleger seus representantes no governo para gerirem as políticas públicas durante o período de seus mandatos; no processo de gestão do Estado, já não aceita ser apenas representada pelas lideranças políticas eleitas, mas quer continuar influenciando a criação e orientação de várias iniciativas públicas. Os conselhos de saúde representam um grande avanço nesse sentido. O setor da saúde foi pioneiro em tal processo no Brasil e até serviu de referência para outros setores das políticas sociais. Em nenhum desses outros setores se atingiram os níveis tão amplos de mobilização e organização obtidos pelos conselhos de saúde.

Apesar de tantos avanços neste campo, tem sido muito comum encontrar um forte sentimento de incômodo e insatisfação entre muitos trabalhadores sociais e lideranças populares mais envolvidos com a construção e ampliação da participação popular no setor saúde. Esse sentimento tem se manifestado muito nos espaços de debate do movimento de educadores populares da área da saúde, aglutinado principalmente pela Rede de Educação Popular e Saúde, e está relacionado à percepção de que os diferentes conselhos e as diferentes conferências de saúde têm aberto pouco espaço para a manifestação de dimensões importantes da criação própria do mundo popular no enfrentamento de seus problemas em saúde. Percebe-se sua importância, mas constata-se, ao mesmo tempo, a
inadequação desse espaço para a expressão de dimensões importantes da participação popular na saúde. Que dimensões são essas que não conseguem ser ali expressadas? Que constrangimentos ali presentes dificultam essa manifestação?

Os conselhos e conferências de saúde têm se dedicado principalmente a temas ligados à gestão e ao planejamento das políticas de saúde e não têm contemplado a articulação e o apoio às práticas solidárias e participativas de enfrentamento dos problemas de saúde na sociedade. No clima de embate que costuma predominar nos conselhos e conferências de saúde, exige-se dos participantes um amplo e sofisticado conhecimento dos meandros das instituições envolvidas para que seus posicionamentos sejam considerados, o que dificulta em muito a participação de ativistas que ainda não acumularam esses conhecimentos. Isso espanta a participação de outras pessoas e ajuda a perpetuar a permanência de lideranças antigas, que vão se distanciando das bases dos movimentos que representam.
Dentro das organizações sociais, forma-se uma burocracia muito hábil em articulações políticas e em jogos institucionais de enfrentamento a outros participantes de movimentos sociais questionadores de seus posicionamentos. Não se encontra, no espaço dos conselhos, um ambiente de solidariedade e de investimento na participação ampliada que predomina no cotidiano da maioria dos movimentos populares. Dessa forma, foi se
criando um sentimento de cansaço e desânimo entre muitas lideranças populares em relação à possibilidade de influir de forma significativa no espaço dos conselhos e das conferências de saúde; ali não se sentem à vontade. Muitas de suas propostas e questões não cabem nesse espaço; há uma tendência a serem convocados e valorizados quando os conselheiros e outras lideranças mais envolvidas no controle social precisam ser legitimados pelo apoio de sua base.

Muitos ativistas sociais e lideranças populares locais percebem esses conselhos essencialmente voltados para a orientação da ação dos serviços estatais sobre os problemas de saúde, mas, para a população, a busca da saúde não se restringe a ações mediadas pelo Estado, pois também está estreitamente ligada a iniciativas e lutas de reorganização da vida pessoal e social que, muitas vezes, a sociedade quer que sejam autônomas em relação às organizações estatais. Assim, muitos ativistas sociais e lideranças populares sentem que os espaços institucionais de participação são restritos à amplitude de suas motivações e buscas.

É muito compreensível que os profissionais progressistas de saúde, ligados à luta para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), encarem os movimentos sociais a partir da perspectiva em que se encontram. Esses profissionais, enfrentando inúmeras dificuldades e oposições e, ao mesmo tempo, preocupados em conseguir parceiros para o difícil trabalho de qualificar e democratizar as políticas públicas de saúde, tendem a ver a vida popular a partir do mirante institucional em que estão. Cobram que os grupos populares se engajem em suas lutas, nos momentos, no ritmo e na maneira que imaginam ser necessário para lutas políticas que julgam prioritárias. O controle social das políticas de saúde passa a ser visto como a totalidade da luta pela saúde dos movimentos sociais e das redes locais de apoio mútuo, quando na realidade não o é. Existem muitas outras dimensões da luta popular pela saúde que só podem ser percebidas se houver uma inserção no mundo popular não preocupada apenas com a
dinamização e aprimoramento das políticas de saúde. A ação do Estado é fundamental para a saúde da população, mas não é tudo. A população, com suas iniciativas diversificadas e autônomas, vem afirmando que a sua busca
pela saúde não se restringe ao que pode ser fornecido pelos serviços de saúde.

Após a criação do SUS, foi criado um amplo movimento de conselheiros e ativistas sociais muito hábeis na importante tarefa de controlar a gestão das políticas de saúde, mas que é apenas uma pequena parcela dos movimentos de solidariedade e luta pela saúde, existentes no meio popular. Infelizmente, quase todo o debate sobre a participação popular na saúde tem focado apenas nesse importante, mas restrito, setor mais organizado dos movimentos sociais e na atuação de lideranças mais aproximadas da dinâmica de funcionamento do SUS. Pouco se tem reparado e valorizado a outra gama, muito mais ampla e difusa, de movimentações e iniciativas sociais voltadas à busca da saúde.

A maioria das atuais práticas técnicas de atenção à saúde foi criada regida pela lógica do capitalismo, em seus centros de pesquisa médica. São práticas, que induzem ao consumo exagerado de mercadorias e serviços, reforçam os caminhos individualistas na busca pela saúde, deslegitimam saberes e valores da população, consolidam a racionalidade instrumental e fria da modernidade e reforçam o poder da tecnoburocracia estatal e empresarial. Sob sua aparência técnica e racional, elas escondem lógicas e interesses de acumulação de capital e legitimação política e, portanto, não são neutras: representam a cristalização das lógicas e interesses dos grupos que as geraram. Ao serem difundidas, reforçam a lógica capitalista na micro capilaridade do tecido social. São instrumentos dos grupos dominantes para manterem sua hegemonia cultural e política sobre o restante da sociedade.

A insistência dos movimentos sociais e das redes locais de apoio social em redefinirem as práticas de saúde tem um significado político que não está sendo devidamente valorizado e explicitado entre os profissionais ligados ao campo da saúde coletiva. Ela pode ser entendida como uma tentativa de desconstrução das lógicas e interesses presentes nas práticas técnicas dominantes nos serviços de saúde e de ampliação das dimensões de solidariedade, amorosidade e autonomia entre pessoas no enfrentamento dos problemas de saúde. O Movimento Sanitário, muito preocupado com a redefinição do desenho institucional do SUS, tem valorizado pouco esta insistência.

Saúde não se alcança apenas com mais e melhores serviços de saúde, tal como hoje é concebido. Saúde, entendida de forma ampla, pressupõe justiça, integração e respeito ao meio ambiente, valorização das dimensões subjetivas profundas das pessoas e democratização sem fim das relações sociais no mundo da economia, nas famílias, comunidades, instituições e organizações civis. Não basta investir na democratização da gestão das políticas de saúde; é preciso investir, também, nas relações sociais que criam condições para a saúde acontecer vida das pessoas.

A assistência à saúde, pela grande presença de seus serviços na capilaridade da sociedade, pode contribuir muito para isto. Muitas experiências comunitárias vêm demonstrando a forte potencialidade das ações de saúde na reorientação da vida social. Para isto, é necessário um movimento de redefinição das práticas sanitárias e da forma como os serviços se relacionam com a população, ouvindo-se e valorizando-se as contribuições e criações já desenvolvidas nos movimentos e nas redes sociais.

Iniciativas populares podem se expandir e multiplicar com pequenos apoios das instituições públicas que respeitem sua autonomia. Muitas dessas iniciativas são frágeis e podem perder a potencialidade de solidariedade, de ampla participação e de valorização dos saberes locais próprios se tratadas de forma pouco compreensiva por gestores e
profissionais de saúde, com promessas de recursos materiais. Não basta anunciar e desejar desenvolver formas dialogadas e participativas de relação com a população. Essa é uma relação assimétrica e que torna difícil o
diálogo respeitador da autonomia popular. A Educação Popular tem se mostrado um saber importante neste processo; é uma arte e um saber, desenvolvidos na América Latina e respeitados em todos os continentes, de
condução desta difícil relação entre trabalhadores sociais e a população, voltados para a construção de uma sociedade sem opressão a partir da participação ampliada dos grupos sociais subalternos e seus movimentos.

A democratização radical da vida social tem um grande efeito no processo de democratização interna das políticas de saúde por caminhos muito mais amplos que o simples fortalecimento dos conselhos e suas conferências voltadas para o controle de sua gestão. Muito se discute hoje sobre como fortalecer o controle social através de estratégias de apoio e reorganização dos conselhos e conferências de saúde. Há muito a se fazer nesse sentido, mas o controle social pleno só virá com a democratização radical da vida social, o que exige enormes esforços a serem desenvolvidos
fora do espaço de tais conselhos e conferências. Esse processo depende de dinâmicas políticas e econômicas gerais, mas o setor de saúde terá muito com o que contribuir se passar a encarar o investimento na democratização da vida social e o enfrentamento das opressões como parte central do trabalho de promoção da saúde.