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LIBRAS em todas as mãos
Ensino da Língua de Sinais para surdos e ouvintes no Vale do Mamanguape
A ausência de um sentido não deveria ser suficiente para impossibilitar a comunicação, uma vez que os recursos humanos são inúmeros, no entanto, a rotina de comunicação das pessoas surdas é repleta de complexidades. Conversar, seja para fazer uma compra, pedir uma ajuda, explicar uma dor (...), pode representar um enorme desafio para os surdos, pois a língua que podem usar para melhor se expressar, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), não é reconhecida pela maioria das pessoas ouvintes.
Aprender LIBRAS também pode ser desafiador, não que a língua seja complicada, a dificuldade está em outro aspecto. Crianças surdas nem sempre são encaminhadas para os serviços onde podem aprender LIBRAS e mesmo quando a pessoa surda domina a língua, falta quem a entenda na escola, na rua e nos estabelecimentos em geral.
A realidade da comunidade surda incomodou profundamente uma professora da UFPB. Walquiria Nascimento, do Departamento de Letras do Centro de Ciências Aplicadas e Educação (CCAE), não conseguiu ficar indiferente e está desenvolvendo um projeto de extensão universitária que cria espaços de integração entre surdos e ouvintes no Vale do Mamanguape.
A estratégia adotada é ensinar LIBRAS, posto que sem uma linguagem formal a comunicação não acontece plenamente. No primeiro ano, o projeto atuou na Escola Antonio Lisboa, onde 540 crianças aprenderam os elementos básicos da comunicação com surdos. Em 2018 a equipe resolveu ampliar as possibilidades oferecendo o curso de LIBRAS para a comunidade.
Docente, voluntários, bolsista e colaboradores se reúnem semanalmente para planejar as ações. Na ação de 2017, o espaço da reunião era utilizado também como momento de formação, pois a equipe precisava estudar metodologias para ensinar LIBRAS, já que era a primeira experiência de sala de aula da maioria. Atualmente a equipe tem mais segurança, então há tempo nas reuniões semanais para partilha de experiências, assim os fatos que acontecem em cada turma são socializados e todos podem aprender.
Criança ouvinte participante da ação treinando sinal de LIBRAS. Foto: Suely Porfirio |
Equipe e rotina da extensão
Ao conhecer o projeto, o primeiro impacto é causado pelo envolvimento evidente da equipe com o desejo de ensinar e aprender LIBRAS. O grupo é grande e tem estudantes de graduação de vários cursos (Letras, Secretariado, Sistemas de Informação, Computação, Matemática e Pedagogia) atuando como monitores (19 voluntários e um bolsista). Tem também sete colaboradores externos (surdos, intérpretes, um professor de LIBRAS e um colaborador que elabora o material gráfico de apoio para as atividades).
Walquiria, criadora e coordenadora da ação, antes de ser professora, trabalhou na área de saúde como enfermeira e pôde observar várias situações nas quais a falta de conhecimento em LIBRAS criou dificuldades para surdos e ouvintes. Desde então investe em formação na língua, primeiro procurou capacitar-se, fez graduação em Letras LIBRAS e trabalhou voluntariamente com surdos por alguns anos. Quando deixou a área da saúde para ser professora da Universidade, em 2015, trouxe essa experiência para a sala de aula.
Os estudantes geralmente fazem o contato inicial com a temática através da disciplina de LIBRAS, que faz parte da grade curricular de vários cursos, como obrigatória nas licenciaturas e como optativa nos bacharelados. É Walquiria quem ministra essas disciplinas no CCAE e semeia nos discentes o mesmo anseio que a motiva na coordenação do projeto: integrar surdos e ouvintes. Foi assim que Rodolfo Ramos, bolsista do projeto e estudante de Letras, conheceu LIBRAS.
Na condição de bolsista PROBEX, Rodolfo precisa atuar por 20 horas nas atividades de extensão e formalmente é esse o tempo que ele dedica organizando, em parceria com a coordenadora, as atividades didáticas do projeto. No entanto, nem sempre o tempo que ele disponibiliza pode ser mensurado, pois já é comum que os surdos da cidade o procurem para conversar. “Quando eu aprendi LIBRAS e comecei a participar do projeto, conheci alguns surdos da cidade e sempre dialogo com eles. É com muita alegria que eu acolho cada um, pois há muita divisão entre surdos e ouvintes, por causa da língua”, falou o estudante.
Apresentação do projeto no ENEX 2018. Foto: Suely Porfirio |
Já os voluntários disponibilizam cerca de 12 horas para compartilhar com a comunidade o aprendizado de LIBRAS acumulado na disciplina e nas atividades do projeto. Um desses estudantes é Emanuel Everton, ele atua como monitor no curso básico e vivência na extensão uma inspiração para o futuro. “Na disciplina o contato com LIBRAS é básico, no projeto eu consigo aprofundar. Pretendo ser professor, quando eu tiver um aluno surdo, quero ter a capacidade de ensinar, sem depender de intérprete”, contou o discente.
A equipe é composta também por pessoas sem relação direta com a Universidade. João Jeronimo é uma dessas pessoas, ele conheceu a coordenadora quando ela ainda atuava na área de saúde. Como amigo de Walquiria e interessado em difundir sua língua, João, que é surdo, já colaborava nas aulas regulares da disciplina de LIBRAS. Nas ações de extensão, ele atua interagindo com a equipe de monitores e com os alunos do curso básico, além de contribuir no planejamento dos conteúdos que são ministrados.
De acordo com João, “todo mundo precisa aprender LIBRAS. O surdo porque é em LIBRAS que ele pode se comunicar melhor. O ouvinte precisa aprender para poder interagir com os surdos que certamente vai encontrar nas escolas, postos de saúde (...). Quando o ouvinte sabe LIBRAS, o surdo já fica aliviado”.
Para alcançar pessoas como João, as ações do projeto contam com o apoio da Prefeitura de Mamanguape. Possibilitada pelas coordenadoras de inclusão da pessoa com deficiência do município, Maria Betânia Lucas Nascimento e Maria Célia Cabral da Silva, a parceria favorece o acesso da equipe aos surdos que residem ou estudam no município. Colabora ainda com a formação da equipe e dos cursistas, uma vez que uma intérprete de LIBRAS do município foi autorizada a participar das atividades do projeto.
A intérprete é Kedja Melo, ela conheceu o projeto em um evento realizado por Walquiria. Logo a intérprete passou a integrar o projeto de extensão e contribui na formação tanto dos voluntários quanto dos alunos do curso básico. Kedja aprendeu a língua motivada por uma experiência na qual não conseguiu se comunicar com uma pessoa surda. Ela afirmou que a comunidade surda ainda enfrenta muitos desafios e as ações do projeto contribuem na luta pela garantia dos direitos dos surdos.
Outra instituição parceira é a Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência (FUNAD), através da coordenadoria de Atendimento à Pessoa com Deficiência Auditiva (CODAPA), coordenada por Lenice Carneiro Leal. A CODAPA dá suporte oferecendo palestras, direcionamentos pedagógicos e cursos.
Os primeiros sinais
No primeiro ano da ação, a equipe do projeto concentrou as atividades em um ambiente escolar. Uma vez por semana, durante os oito meses de realização do projeto, a equipe ensinou LIBRAS na Escola Antonio Lisboa, em Rio Tinto – PB. Nesse mesmo período e também semanalmente, ensinou LIBRAS para cuidadores e professores que demonstraram interesse em aprender a língua de sinais.
Na escola, a proposta inicial era usar 20 minutos, em cada turma, para ensinar às crianças o alfabeto e os sinais iniciais, apenas conteúdo básico que possibilitasse uma conversa entre um surdo e um ouvinte. Mas a receptividade das crianças e o entusiasmo da equipe da escola com o aprendizado de LIBRAS provocaram mudanças no planejamento inicial.
Logo a equipe percebeu que era possível aprofundar o ensinamento e aos poucos foi introduzindo conteúdos mais avançados da Língua. Com a metodologia utilizada, cheia de recursos lúdicos e baseada na prática imediata da comunicação, as crianças evoluíram rapidamente e em poucas semanas já havia muita gente usando a língua de sinais na rotina escolar.
Com a atuação do projeto, mudanças pequenas, mas importantes em termos de inclusão, foram logo notadas. Rosilene, intérprete de LIBRAS, comentou que, pelo obstáculo da língua, crianças surdas normalmente são mais isoladas. Para a intérprete, a atuação do projeto está facilitando diálogos. “Agora na Escola todo mundo sabe cumprimentar, dizer um: - Oi, tudo bem? E isso é muito importante, tanto para os surdos quanto para os ouvintes”, explicou Rosilene.
Maicon, um dos alunos da escola mais animados com as ações do projeto, contou que conseguir falar em LIBRAS possibilitou-lhe entrar em contato com colegas que dividiam a sala com ele, mas eram praticamente desconhecidos. “Antes a gente não falava com o ela [criança surda da sala] agora a gente consegue conversar e já somos amigos”, relatou o menino.
Quem também observou mudanças foi Adrielly, cuidadora que trabalha na escola municipal Herman Lundgren dando suporte a duas crianças surdas, Luana e Anderson. Antes de conhecer o projeto ela não se comunicava com os alunos surdos através da língua de sinais, tinha dificuldade para interagir: nem as crianças entendiam a cuidadora, nem ela os entendia plenamente. Quando Adrielly iniciou a aprendizagem da língua de sinais, ela passou a ser uma multiplicadora dentro do ambiente escolar, possibilitando que outras crianças ouvintes começassem a interagir com os colegas surdos. Foi o aprendizado de LIBRAS que fez Luana e Anderson saírem do silêncio para construir novas amizades. “O projeto tem contribuído bastante no convívio das crianças. Não há mais barreiras entre surdos e ouvintes, vemos o grupo de crianças interagindo normalmente”, afirmou Adrielly.
Como a cuidadora, outros profissionais da educação procuraram o projeto para aprender LIBRAS. Pessoas surdas procuraram e ainda outros estudantes. A equipe então se organizou para conciliar a ação na escola com o ensino específico para quem procura aprender fora da escola. Na Universidade, a equipe reunia toda semana os interessados na língua de sinais e ensinava por duas horas. Aos poucos foram surgindo mais pessoas querendo falar em LIBRAS e a equipe do projeto percebeu que havia como ampliar as ações.
Libras em todo lugar: na escola, na lanchonete, no banco, no hospital (...).
Parte da atuação da equipe do projeto tem como foco mapear quem são as pessoas surdas que vivem no Vale do Mamanguape, um pouco para colaborar na melhoria das condições de comunicação delas e um pouco para encontrar pistas de como melhorar a atuação.
Esse mapeamento e o interesse demonstrado pelas pessoas foram a base para a ação de extensão em LIBRAS de 2018. O segundo ano do projeto tem como foco ensinar LIBRAS às pessoas da comunidade, para que a pessoa surda possa ser compreendida quando sai de casa, para que ela possa desenvolver, sem dificuldades de língua, as ações comuns no dia a dia, como um atendimento no banco, na Unidade de Saúde, por exemplo.
Serão ofertados três cursos, com 75 vagas em cada um. Para o primeiro curso, a procura foi bem expressiva, tanto que o período de inscrição foi encerrado antes do previsto e a equipe aumentou a quantidade de vagas para atender ao menos parte da demanda. Nesse grupo há uma turma somente de professores e mais três turmas com trabalhadores do comércio, profissionais de saúde, estudantes (...).
As aulas são ministradas por Walquiria e pelos monitores/colaboradores organizados em equipes para atender cada turma. Além das aulas, o projeto realiza mensalmente um encontro que reúne todos os inscritos. É um espaço para socialização da grande comunidade envolvida com o projeto, na qual a Coordenadora pode complementar a formação expondo aspectos mais gerais da cultura surda. Atualmente, a equipe está concluindo o primeiro curso e já prepara as atividades para a segunda turma, que está programada para iniciar em julho.
Encontro das turmas do curso básico (2018). Foto: Suely Porfirio |
Crianças surdas interagindo plenamente na rotina escolar é um dos frutos desse projeto. Como explicou Leandro Potiguara, monitor na ação, o ensino de LIBRAS proporciona na escola a experiência de inclusão normalmente negada aos surdos na sociedade. “Na rotina escolar, o aluno pode precisar pedir algum objeto emprestado, saber a página do livro, do horário do intervalo (...) e as atividades que desenvolvemos na escola ajudaram tanto surdos quanto ouvintes a manter diálogo”, disse Leandro, que é estudante de Letras na UFPB e já atua no ambiente escolar em virtude da sua primeira graduação, em Geografia. LIBRAS e extensão universitária: um caminho de inclusão
Outro mérito inegável do projeto é despertar na população do Vale o interesse em conviver, sem barreiras de língua, com a comunidade surda. Para Josivânia Bandeira, participante do curso básico e membro da Comissão de Inclusão e Acessibilidade do CCAE, o projeto “multiplica as chances para o surdo se comunicar no ambiente em que vive, sem precisar sair para outra cidade, pois mesmo que se aprenda pouco no curso de LIBRAS, esse pouco pode ser suficiente para dar informações que o surdo precisa”.
Oferecer curso de LIBRAS, para crianças e para a comunidade, pode parecer simples, no entanto, ao atentarmos para o fato de que o silêncio marca boa parte das relações mantidas entre surdos e ouvintes, logo percebemos que o diálogo mais corriqueiro pode representar bastante no processo integração social. É na perspectiva criar espaços de inclusão que atua essa equipe, sempre realizando a conexão necessária entre o conhecimento adquirido na Universidade e as necessidades da comunidade.
Equipe do projeto. Foto: Cedida pela equipe |