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O luto dos sentidos: cegos contam como lidaram com a perda da visão
Dina Melo, jornalista e transcritora Braille
Foram intermináveis segundos dentro d’água. O suficiente para os amigos, ancorados na balsa de onde pulou, acharem que se tratava de uma brincadeira do experiente mergulhador. Mas mais do que o suficiente para quase pôr fim à vida de Jadson Gomes. Contrariamente aos prognósticos médicos, ele sobreviveu. “Era 2006, eu tinha 20 anos. Estávamos em Cabedelo, a 200 metros da orla. Lembro que brincávamos, até que eu caí desacordado no mar. Fui resgatado em estado de anóxia cerebral [falta de oxigenação no cérebro]”, lembra.
Descrição: Jadson contempla a paisagem do alto de uma falésia com vista para o mar. Legenda: Jadson Gomes no ambiente que deu uma virada em sua vida (Arquivo pessoal). Fim da legenda.
Lesão neurológica tão severa que o ex-nadador foi induzido a 27 dias de coma. “Primeiro, disseram à minha família que eu não sobreviveria. Depois, que se sobrevivesse, não sairia do estado vegetativo. E depois, que se saísse, ficaria acamado”, lista. Para as sequelas neurológicas que sofreu, a sua recuperação foi tida como milagrosa. No entanto, o corpo cobrou o seu preço: Jadson perdeu a percepção visual quase total devido aos danos no lóbulo occiptal (responsável pelo processamento das imagens e o equilíbrio), e teve sequelas nos movimentos dos braços e pernas, que demandam um constante trabalho fisioterápico.
Apesar de difusa, a lesão não chegou a atingir áreas vitais ou cognitivas, o que possibilitou ao rapaz retomar a vida social e atividades funcionais de forma plena, ainda que com adaptações. “Hoje digo que não chego a sentir o peso da deficiência: sempre fui de espírito leve, cercado de amigos e nunca parei de ler. Sinto-me realizado”, diz o hoje estudante de Psicologia de 33 anos.
Recomeçar na meia-idade
Imagina levar a vida normal de sempre: acordar, ir trabalhar, sair para comer, eventualmente se divertir. Agora imagina esta grande janela para o mundo projetada pelos olhos ir paulatinamente se fechando. O glaucoma chegou à vida do chefe operacional de tevê Marinésio Vital, de 51 anos, da mesma forma assintomática que acomete 80% dos casos registrados no Brasil. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Glaucoma (SBG), por meio de um levantamento encomendado ao Ibope, a doença atinge de 2 a 3% dos indivíduos acima de 40 anos, quase 1 milhão de pessoas –, e tende a aumentar devido ao envelhecimento da população.
“Em 1996, descobri num exame de vista que tinha glaucoma, além de um grau mínimo de miopia. Nada que me atrapalhasse levar a vida”, começa. À época, ele aliava o trabalho na emissora ao de representante comercial, gerenciando equipes de vendas em outras cidades. “Não havia histórico familiar ou demais problemas de saúde que pesassem sobre a minha condição. Então, eu repetia os exames semestralmente no consultório e usava um colírio todas as noites”, diz.
Porém, o sinal de alerta se acendeu em dois episódios iguais, ocorridos há 11 anos, quando comandava o controle-mestre da tevê: “O editor-chefe me chamou a atenção durante o jornal porque eu havia errado a grafia dos caracteres [a legenda que situa pessoas e lugares nas matérias]. Eu olhava os nomes e não conseguia enxergar onde estava o erro”. Mesmo desconfiado, Marinésio não retornou aos exames regulares. Quando voltou à oftalmologista, já era tarde. “Quando ela aferiu a minha pressão intraocular, estava em 46 mmHG, quando o normal é de até 24 mmHG”. Só neste dia, percebeu que a cegueira total havia chegado ao olho direito e tomado metade do esquerdo. Aumentou a quantidade de colírios para quatro, mas já notava o avanço rápido da doença.
“Sofri dois grandes baques em 2009, quando tive que me afastar do trabalho. O primeiro foi passar 15 dias em casa, pensando em como levar a vida sem enxergar mais. O segundo foi lidar com a reação dos meus filhos, na época pequenos e acostumados com a rotina ativa do pai”, conta.
Descrição: Marinésio trabalha ao computador, em escritório de cosméticos. Legenda: "O trabalho foi o sustentáculo de vida que a cegueira não me tirou", resume Marinésio (Arquivo pessoal). Fim da legenda.
Nascer cego e ficar cego são dois processos psicológicos inteiramente diferentes. O segundo implica, geralmente, atravessar um processo de negação e luto até a aceitação. “Maioria dos deficientes não chega a se queixar da cegueira em si, mas da dependência que antevê do outro. Daí a importância da atuação de uma equipe multiprofissional em paralelo (para desenvolver a habilidade nas atividades do dia a dia e em orientação e mobilidade, por exemplo) e da família, para a adaptação que uma nova vida requererá”, ensina a terapeuta Maria Eurinete Monteiro, especialista na área de deficiências.
Marinésio buscou reabilitação na Fundação Centro Integrado de Apoio à Pessoa com Deficiência (Funad), aposentou-se em 2012, fez curso de empreendedorismo e decidiu, em 2016, também cursar Psicopedagogia na UFPB. Hoje caminha com independência com a bengala e encontra no trabalho a razão primeira de não deixar de investir em si. “Nunca deixei de vender: a minha resiliência sempre foi sustentada pelo trabalho. É da minha personalidade ser guerreiro, ir em frente e nunca parar”.
Glaucoma, um mal silencioso
O glaucoma é uma doença da visão associada ao aumento da pressão intraocular que provoca atrofia progressiva no nervo ótico e consequentemente cegueira, se não for tratada. Atinge cerca de 65 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e é a maior causa de cegueira evitável e irreversível.
É considerada a principal causa de cegueira irreversível no mundo, porque não apresenta sintomas em grande parte dos casos, a não ser quando a doença caminha para um estado de irreversibilidade. Há quatro tipos de glaucoma classificados. Alguns fatores de risco:
- Envelhecimento;
- Raça (negros são mais propensos a desenvolver glaucoma do que brancos, principalmente acima dos 40 anos de idade);
- Histórico familiar;
- Doenças no olho, como alguns tumores, descolamento de retina e inflamações,
- Remédios à base de corticosteroides;
- Diabetes, problemas cardíacos, hipertensão e hipertireoidismo também podem levar à doença.