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Permanência nas universidades é mais difícil para estudantes negras

publicado: 22/09/2020 14h20, última modificação: 22/09/2020 14h20

As políticas afirmativas de cotas são subsídios importantes para o ingresso de estudantes, sobretudo negros, pobres e de escolas públicas nas universidades do país. Em 2018, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de estudantes negros e pardos era 50,3% . Contudo, apenas a vaga no ensino superior não foi suficiente para permitir que esses ingressantes tivessem condições de permanecer na graduação.

“Eu recebia ajuda dos amigos para conseguir comprar as apostilas”, conta a estudante  Uliana Gomes sobre o primeiro período no curso de Ciências Sociais na UFPB. Ela veio do Sítio Lagoa de Gonçalo na cidade de Pilar, a cerca de 60 km da capital João Pessoa. Durante a graduação, a assistência estudantil foi o que a fez permanecer na Universidade. “Sempre uso a frase que é ‘a Universidade é pública, mas não é gratuita’, inclusive é muito caro permanecer nela”.

Para Marcela Lukerli, estudante do curso de Medicina, as dificuldades foram similares. Natural de Recife, a estudante veio para a capital paraibana com as despesas pagas pela mãe até conseguir o auxílio da Universidade. “Eu venho de uma família bastante humilde e isso pesou muito porque tivemos de tirar de onde não tinha. Foi bastante complicado”, desabafa.

Marcela e Uliana são reflexos dos dados da pesquisa “Raça, Gênero e Saúde Mental nas Universidades Federais”, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Segundo o estudo, a questão financeira é o principal fator que impacta a vida e o desempenho acadêmico de homens e mulheres negras.

Com esse cenário, os auxílios estudantis são importantes ferramentas de permanência dos estudantes na universidade. Segundo a UFPB , são investidos anualmente cerca de R$ 32 milhões em política estudantil, com um crescimento real entre os anos de 2014 e 2017 nas assistências à alimentação, à moradia e ao acesso à Residência Universitária.

Porém, como relatam as estudantes, os valores não são suficientes. “O auxílio-moradia só dá para pagar o aluguel, a água e a energia. Mas as refeições de café da manhã e de fim de semana, produtos de higiene, passagem de ônibus, entre outras, a Universidade não ajuda”, conta Marcela, que no início do curso também não tinha acesso a computador para fazer trabalhos e pesquisas. Por essa razão, precisou se inscrever em outros projetos, como atividades de extensão e aluno-apoiador para arcar com os gastos.

Raiane Mendonça, estudante do curso de Ciências das Religiões e atual representante da Residência Universitária Masculina e Feminina da UFPB (RUMF), chegou a pensar em desistir do curso antes de conseguir o auxílio-moradia, pois também havia sofrido uma série de violências: “No momento em que lutei pela vaga na residência, pensei: ‘Para que sofrer humilhação? Por que me humilhar por tão pouco e que é direito meu?’”. 

As queixas frequentes com relação ao auxílio estudantil recaem, sobretudo, no burocrático processo de seleção, como explica Uliana, que atualmente é doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), da UFPB: “Quem procura a assistência estudantil já vem tão debilitado de um processo de exclusão social e essas seleções dentro da Universidade acabam fortalecendo ainda mais essa exclusão. As pessoas que precisam não têm esclarecimento de como proceder diante do processo e acabam ficando para trás”. 

A Pró-Reitoria de Assistência e Promoção ao Estudante (Prape) defende que os auxílios oferecidos aos estudantes em condições de vulnerabilidade socioeconômica permitem a permanência dos estudantes. Segundo dados da pró-reitoria, no ano de 2019, quase 2100 alunos foram assistidos pelos auxílios estudantis na UFPB. Desse total, 56% declararam-se como negros ou pardos. Já as mulheres representavam 54% do número de estudantes contemplados pela assistência universitária. No entanto, como reconhece a assistente social da Prape Cíntia Cinara, “sabemos que os valores dos auxílios não são 100% suficientes para as necessidades básicas e acadêmicas”. 

Ensino Remoto Emergencial

Visando diminuir a disparidade de acesso a ferramentas de ensino e proporcionar o acesso às aulas remotas durante a pandemia da Covid-19, a UFPB lançou dois editais de assistência estudantil. Um deles irá fornecer uma ajuda financeira para que estudantes comprem equipamentos eletrônicos para acompanhar as atividades e outro prevê a distribuição de chips de celular para acesso à Internet.

A avaliação da Pró-reitoria de Graduação (PRG), por meio do Observatório de Dados da Graduação, permitiu concluir que 24% dos alunos da UFPB não participaram das atividades on-line que foram oferecidas previamente. Desses estudantes, 38,8% declararam-se negros e 36% com renda familiar de até dois salários mínimos. Ainda segundo esses dados, 24% dos estudantes assistidos por algum auxílio não participaram das atividades.

A possibilidade de ser contemplada com o auxílio instrumental do Período Remoto Emergencial foi uma das razões que fez com que Marcela pudesse se matricular nas disciplinas de seu curso. “Durante o período suplementar, acabei trancando uma disciplina optativa porque a maior parte das aulas era síncrona e minha Internet é muito ruim. Com o auxílio, espero poder participar bem mais agora”, conta.

Segundo pesquisa da Andifes de 2019, sobre o perfil socioeconômico dos estudantes de graduação, 78,3% dos estudantes do Nordeste possuem renda familiar per capita de 1,5 salário mínimo. As mulheres correspondem a 52,5% do corpo discente e 65,9% se declaram negros.  

Ainda assim, não é apenas a assistência financeira e instrumental que mantêm os estudantes com um bom desempenho acadêmico. Marcela é também exemplo de como as famílias foram afetadas pela mais recente crise, já que o pai está desempregado e a mãe vende lanches na rua, mas teve uma queda expressiva nas vendas. 

Desse modo, a pandemia da Covid-19 ampliou o debate sobre outro tema vital no cenário acadêmico: a saúde mental dos universitários. A apreensão com contas a pagar, o medo do novo vírus e a ansiedade em decorrência do isolamento social são barreiras de desgaste emocional a serem enfrentadas para a permanência no ensino superior.

Impacto psicológico

Ainda de acordo com a pesquisa da UERJ sobre a permanência dos estudantes nas Universidades, antes da pandemia do novo Coronavírus, as mulheres negras destacavam como maiores dificuldades no cenário acadêmico os problemas emocionais (24%) e a carga excessiva de trabalhos estudantis (23%). As dificuldades no campo acadêmico também se relacionam com a quantidade de atividades nas disciplinas dos cursos e a linguagem acadêmica dos textos.

No caso dos estudantes assistidos pelos auxílios estudantis, as dificuldades específicas recaem sobre os locais de moradia, que muitas vezes são precários, as condições de comida e o atraso nas bolsas de estudo. “Então, como esperar que esses alunos consigam ter bom desempenho na Universidade, se eles não têm uma condição mínima para sobreviver?”, questiona Uliana.

Para Raiane, a pandemia de Covid-19 ampliou o desgaste emocional. Ela relatou crises severas de ansiedade, depressão e pânico, que a impossibilitaram de acompanhar as atividades de seu curso, mantendo a frequência apenas nos projetos de extensão e de pesquisa que participa na UFPB. Com o início do Período Remoto Emergencial, a estudante espera poder assistir as aulas, mesmo com a Internet instável da RUMF.

Todas as estudantes ouvidas pela CoMu esperam mais subsídios para que consigam se manter de forma digna na Universidade, contemplando suas condições de vulnerabilidade não só econômicas, mas também emocionais. Esse processo de exclusão social em razão de raça e classe teve e continua tendo impacto significativo nas vidas dessas universitárias. Para Uliana, é um processo de refletir as diferenças existentes entre ela e outros colegas: “Eu tive que entender que não era questão de inteligência, mas do que eu tive acesso. Eu ficava me comparando aos outros e eu não tinha o mesmo desempenho que meus colegas. Era uma questão de oportunidades que uns tiveram e outros não”, conclui.

 Ana Lívia Macêdo | Edição: Lis Lemos