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Mulheres trans e travestis se reinventam através da arte
Com raras oportunidades no mercado de trabalho formal, as mulheres trans e travestis têm como principal fonte renda o trabalho informal e o subemprego. Essa realidade é apenas um dos reflexos da transfobia no país.
O coordenador Centro de Cidadania LGBT, Roberto Maia, relata que no, do total de mulheres atendidas, pelo menos 90% recorrem à prostituição para sobreviver. Para ele, esse número é resultado da falta de acesso desse grupo a condições básicas na sua construção social, como educação, moradia, renda e lar estável. A maioria das histórias dessas mulheres têm narrativas parecidas: ser “diferente” quando criança, incompreendida na adolescência e abandonada por familiares e amigos quando assume uma identidade sexual que foge da normatividade.
A arte como saída
Entre um mercado de trabalho transfóbico e a prostituição como recurso, mulheres trans e travestis enxergam na arte uma forma de sustento e de liberdade. Porém, se dedicar a uma carreira artística não é tarefa fácil. Além das incertezas financeiras da área, a produção e o trabalho feito por mulheres marginalizadas as colocam numa posição desvalorizada no mercado.
A artista multivisual Dorot d'Ruanne conta que a autonomia é a opção mais acessível, pois tanto conseguir um emprego, quanto permanecer nele requer privilégios. “A minha maior dificuldade no ambiente formal é o meu corpo travesti. Desde que era adolescente e ia fazer entrevista de emprego, eu sentia no olhar do outro que meu corpo afeminado não era pra estar ali”.
Todo mundo gosta de arte, mas quem quer investir numa artista trans?
A artesã Violeta Oliv cria peças de crochê há dois anos por incentivo da mãe como forma de sobrevivência e terapia, mas a desvalorização na área faz com que ela busque outras formas de sustento “Nos últimos dois anos, fiz cerca de 20 entrevistas de emprego e não fui chamada em nenhuma”, revela. Atualmente, Violeta cursa licenciatura em Pedagogia e pretende conciliar as duas ocupações. “O crochê me desperta muitas sensações e inspirações. Amo tecer os fios e ver a construção de cada peça”, conclui.
Para driblar esse cenário nada inclusivo nas empresas, Ayra Liberato resolveu produzir eventos e festas comandado por travestis e trans pretas em João Pessoa. A artista queria se apresentar, mas não conseguia espaços na capital e decidiu criar sua própria “bolha” artística. “Eu trabalho muito com meu corpo e isso é uma forma de alívio, porque eu destravo tudo o que me bloquearam e diziam que eu não podia fazer quando pequena”.
Através da arte muitas dessas mulheres têm conseguido uma rede de apoio na qual se conectam e dividem angústias e conquistas. Um desses grupos forma o projeto de extensão “Cine Bixa” que objetiva dar voz e visibilidade para as mulheres trans e travestis através de ações e performances artísticas das estudantes da UFPB. A aluna de Serviço Social, Alice Cavalcante, não sabia da sua vocação para as artes até conhecer o projeto. “Foi com o Cine Bixa que comecei o meu auto reconhecimento enquanto travesti. Através da arte performance, e da arte escrita, consegui me entender enquanto humana e enquanto ativista da arte”, conta.
Alice está só começando a sua carreira, mas já percebe as dificuldades na área. “Sou autônoma, e vivo de uma bolsa acadêmica. Meu maior foco é na escrita e eu venho dedicando parte do meu tempo para construir um livro literário. No entanto, por ter apenas um smartphone como meio de produção, as dificuldades de uma escrita mais intensiva são reais, deixando meu trabalho muito mais cansativo e lento”, avalia.
Consequências da pandemia
A pandemia causada pelo novo coronavírus trouxe uma nova realidade para todos os artistas. Sem poder produzir shows, eventos e exposições presenciais as artistas tiveram que se reinventar para continuar produzindo. Para Ayra, essa fase está sendo muito difícil porque impede suas performances, pois ela compreende que apresentações online não conseguiriam transmitir a essência de seu trabalho. “A internet propõe essa conexão, mas pra mim não é tão efetiva. Sou a pessoa que gosta do contato visual, olho no olho”, revela.
Com uma perspectiva diferente, apesar das dificuldades técnicas de produção, Alice enxergou com o distanciamento social causado pela pandemia da Covid-19 uma maneira para encontrar seu público. “Através dessa onda de exposição artística virtual, consegui algum espaço. A quarentena reforçou esse acesso à arte com poucos meios de produção”, explica.
No começo da pandemia, Dorot estava ansiosa para aproveitar o isolamento social e produzir mais, mas a realidade lhe colocou em outro caminho “Foi o momento que comecei a pensar em mim mesma, focar na minha saúde mental e espiritual”. Além disso, trabalhar remotamente possibilitou a Dorot conhecer e trabalhar com pessoas de renome nacional e produzir eventos virtuais.
O Centro de Cidadania LGBT através do projeto Transcidadania JP busca inserir mulheres trans e travestis no mercado de trabalho formal. Desde 2015, o programa desenvolve oficinas e debates nas empresas sobre diversidade e inclusão, com o objetivo de preparar um ambiente diverso para receber as mulheres trans e travestis. “Não adianta a gente conseguir emprego para essa mulher trans ou travesti sem mudar a cultura da empresa, senão elas não vão ficar no trabalho”, explica coordenador.
Gleyce Marques | Edição: Lis Lemos