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Gênero é barreira para acadêmicas com pesquisas sobre a Covid-19

publicado: 21/08/2020 17h10, última modificação: 21/08/2020 18h21

A pandemia da Covid-19 criou desafios a serem solucionados dentro e fora das universidades. As pesquisadoras abraçaram o desafio de estudar o tema do novo Coronavírus e desenvolver trabalhos que tenham impacto significativo na sociedade. Contudo, pelo fato de serem mulheres, muitas delas têm enfrentado dificuldades para prosseguir as pesquisas e contribuir de forma integral com os seus estudos. 

Segundo dados da agência Gender in the Global Research Landscape, em 2017, as mulheres já eram metade dos pesquisadores no campo da ciência no Brasil. Porém, um estudo recente do periódico BMJ Global Health aponta que só um terço de quem assina as pesquisas sobre Covid-19 na área da saúde são as mulheres.

A docente do Departamento de Biologia Celular e Molecular da UFPB, Tatjana Keesen,  tem se dedicado ao estudo de doenças infecciosas, como as arboviroses, que incluem o vírus da dengue, Zika e Chikungunya. Com o surgimento do novo Coronavírus, passou também a desenvolver estudos que possam mensurar a gravidade ou indicar a presença da doença no organismo.

A pesquisa “Avaliação de biomarcadores prognósticos em linfócitos T-CD8 e T-regulatórios frente à infecção pela Covid-19” poderá indicar melhores abordagens de medicamentos e até mesmo de vacinas para combate o novo vírus. Porém, essa não é a única pesquisa em que Tatjana está envolvida. No momento, ela participa de outros quatro projetos de pesquisa na área da Covid-19, além de outros projetos da Universidade, e acumula demandas de aulas on-line.

Essa rotina de pesquisa, aula, reuniões on-line e entrevistas relacionadas à pandemia é ainda alinhada com demandas domésticas e familiares. “As maiores dificuldades são o volume de trabalho, a rotina da casa e com a minha filha”, conta. “Estudo o tempo todo, mas o conhecimento é gratificante”.

Efeitos sociais da pandemia

Thayanne Guilherme e Giordana Karoline são pesquisadoras da área da Pedagogia e têm desenvolvido um estudo com foco nas mães pesquisadoras. A pesquisa “Maternidade em tempos de pandemia: atravessamentos do novo coronavírus na produção científica de mulheres-mães” busca identificar como o isolamento social intensifica o processo de exclusão das mães pesquisadoras, visto que essas mulheres possuem uma carga maior de trabalho doméstico, impossibilitando a produtividade acadêmica exclusiva, sobretudo nos programas de pós-graduação.

Os resultados preliminares do estudo já apontam que a pandemia tem afetado a saúde mental das mulheres-mães, que estão sobrecarregadas fisicamente e com dificuldade de conciliar o cuidado dos filhos em tempo integral e se dedicar ao estudo acadêmico. Na pesquisa, 87,5% das mulheres possuem maiores responsabilidades quanto aos cuidados dos filhos, ainda que 79,7% dividam o espaço doméstico com outros responsáveis. Os dados apontam também que 3,1% das participantes não possuem Internet em casa, colocando-as em situação de desigualdade.

Os resultados evidenciados pela pesquisa estão sendo vividos pelas próprias pesquisadoras. Thayane engravidou durante a seleção do mestrado e no final do primeiro semestre a sua filha, Flora, nasceu. Desde então, a pesquisadora tem enfrentado dificuldades para permanecer no mestrado em Educação, na UFPE. Durante a pandemia, tem tido o obstáculo ainda maior com a carga de cuidados da filha, os afazeres domésticos e a pesquisa acadêmica. “Minhas dificuldades são dispor de tempo, atenção, concentração e saúde mental para ler, escrever e produzir. Os prazos gritam e as cobranças chegam aos montes, ao mesmo tempo que uma bebê de um ano pede minha atenção”, conta.

Já Giordana defendeu o trabalho de conclusão de curso em Pedagogia grávida de nove meses e, após nove dias, sua filha nasceu. Após 21 dias do parto, as duas estavam juntas na colação de grau de Giordana. “Com a maternidade e as responsabilidades acarretadas por ela, me afastei da Universidade. Esse período foi muito doloroso, pois eu sempre senti vontade de continuar estudando, mas a minha realidade como mãe me fez pensar que não conseguiria”, desabafa.

“As mulheres produzem conhecimento científico, mas a Universidade não cria políticas de equiparação de gênero”, defendem as pesquisadoras Giordana e Thayanne

Quando a filha fez dois anos, Giordana se sentiu pronta para voltar à Universidade e se inscreveu no curso de especialização em Gênero e Diversidade na Escola, da UFPB. No entanto, a pandemia de Covid-19 trouxe mais desafios para sua vivência como mãe e pesquisadora: “A maior dificuldade é a falta de apoio. Passo o dia com a milha filha e divido o tempo em cuidar dela, organizar os afazeres da casa e estudar nos momentos em que ela dorme ou quando o pai chega e fica com ela”, afirma.

A pesquisa é orientada pela pesquisadora Jeane Félix, docente do Departamento de Habilitações Pedagógicas da UFPB. Jeane defende a necessidade de mais mulheres nos campos de pesquisa. “Tradicionalmente, são os homens que ocupam esse espaço, que produzem mais. Não porque sejam melhores pesquisadores, mas porque não têm que se preocupar com atribuições, como o cuidado com os seus filhos e as tarefas domésticas”, explica a pesquisadora sobre as desigualdades que incidem sobre homens e mulheres na academia.

O efeito da pandemia na pesquisa acadêmica também é evidenciado na recente pesquisa da Parent in Science. De acordo com o estudo, mulheres com filhos formam o grupo cuja produtividade acadêmica foi a mais afetada pela pandemia. No quadro geral, apenas 49,8% das pesquisadoras conseguiram manter o planejamento de submissão de trabalhos, enquanto para os homens o percentual aumenta para 68,7%. Em uma situação de pandemia, como a de Covid-19, a ausência de pesquisadoras mulheres reflete não só a subutilização dos profissionais capacitados para a realização de estudos, mas também a perda de abrangência de temáticas em virtude de gênero.

Assim, para Jeane, não basta a presença de mulheres na Universidade, mas a criação de mecanismos e políticas institucionais que auxiliem a permanência dessas mulheres no espaço acadêmico, vistas com uma “garantia do direito à igualdade”. “Precisamos desenvolver políticas de gênero mais sensíveis, que permitam às mulheres pesquisadoras desenvolverem suas pesquisas em condições de equidade, considerando também espaços que as mulheres possam deixar suas crianças”. Jeane destaca a necessidade do recorte transversal de gênero, que também considere intersecções de raça e classe, para que o campo da pesquisa acadêmica seja plenamente desenvolvido.

Ana Lívia Macêdo | Edição: Lis Lemos