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Mulheres vítimas de violência sexual têm direito ao aborto legal

publicado: 04/09/2020 17h02, última modificação: 04/09/2020 17h02

Nos últimos dias as redes sociais foram palco de uma disputa ideológica sobre aborto. De um lado, uma criança de 10 anos que, após uma série de estupros ao longo de quatro anos praticados pelo próprio tio, engravidou, e do outro, representantes religiosos de grupos “pró-vida”. Para ter acesso ao aborto garantido em lei, a menina viajou para Pernambuco para ser atendida. Em 17 de agosto, a gestação foi interrompida.

Em média, seis meninas entre 10 e 14 anos são internadas todos os dias no Brasil para fazer aborto após terem sido estupradas, segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019). Em 2020, até o momento, o país registrou 642 abortos decorrentes de gravidez precoce, resultando em abortos, sejam espontâneos ou realizados em hospitais.

A assistente social e doutora em psicologia pela UFPE, Nathalia Diórgenes, aponta que há uma escassez de serviços de saúde que tenha atendimento humanizado e digno no Brasil. “Qualquer serviço em que exista a área de obstetrícia tem capacidade de fazer a interrupção da gestação em qualquer uma das condições previstas em lei. Existe uma política do Ministério da Saúde de atenção humanizada ao abortamento que orienta como os serviços devem agir, mas as unidades alegam diversos problemas como, falta de capacitação e de insumos”, explica Nathália com base em seus estudos sobre o tema desde a graduação.

A pesquisadora ainda reforça a existência de uma lista do Ministério da Saúde com todas as unidades de referência de aborto legal no país. Porém, estudos feitos nesses centros concluem que muitos não funcionam. “A gente tem estados sem nenhuma unidade que presta essa assistência, já tem outros como Pernambuco que vários serviços funcionam. Pernambuco tem quatro unidades na região metropolitana, uma no agreste, uma no sertão central e outra no Vale de São Francisco”, afirma.

Na Paraíba, existem duas unidades de atendimento em todo o estado. O Instituto de Saúde Elpídio de Almeida, em Campina Grande e  o Instituto Cândida Vargas, em João Pessoa. O acolhimento da capital funciona 24 horas e atende para mulheres que sofreram violência sexual. O atendimento é realizado por uma equipe multiprofissional, com médicas, psicólogas, assistentes sociais e enfermeiras.

“O primeiro atendimento deve ser feito, no máximo,em até 72 horas após da violência. Nele é feito a escuta da vítima, apoio psicológico, e é feito o kit de emergência, com administração de anticoncepcional para prevenir gravidez, de antibiótico para prevenir infecções sexualmente transmitidas e retrovirais para prevenir Aids”, explica o coordenador do setor, o médico José Paulo Gomes.

No caso da vítima ser menor de 14 anos, ela precisa estar acompanhada de um representante legal ou pelo conselho tutelar. Após este atendimento ela segue para delegacia da infância e juventude e posteriormente para o Departamento Médico Legal (DML) para colheita de vestígios do agressor, para comprovação da autoria de crime.

Se a paciente tiver idade superior a 14 anos, recebe orientação da importância do registro da ocorrência policial e da colheita de material no DML. “Muitas se negam a fazer estes procedimentos”, comenta o coordenador. Quando a vítima não procura e não recebe esses primeiros serviços e ocorre a gravidez, é realizado o aborto legal. O médico afirma que a mulher é acompanhada psicologicamente pelo serviço até seis meses após o primeiro atendimento.

Nathalia Diórgenes indica em sua pesquisa sobre aborto no sertão uma série de violências a que as mulheres estão sujeitas a sofrer nesse ambiente, que nem sempre é acolhedor. “Essas práticas discriminatórias se materializam em julgamento moral, tratamento indigno, ameaças de denúncias, rispidez no tratamento, longa espera, procedimentos feitos sem explicação, violação de privacidade e confidencialidade, excessos de toques ou outras formas de manipulação vaginal, falta de medicamento para alívio de dores, entre outras”, elenca.

Segundo os dados do Instituto Cândida Vargas, das 152 mulheres em situação de violência atendidas no ano passado, 12 delas fizeram o aborto. Já no primeiro semestre desse ano, foram atendidas 78 vítimas e 8 interromperam a gravidez. Esse número poderia ser bem maior na Paraíba, pois o estado registra apenas um centro especializado de abortamento legal, colocando a margem todas as mulheres que não moram e não têm condições de se deslocarem para a capital, que acabam por recorrer a métodos e clínicas clandestinas para interromper a gestação.

Criminalização do aborto não diminui prática

A estudante Maria Silva recorreu ao aborto por violência e pressão psicológica do ex-namorado. “Ele me mandou tirar o bebê, porque senão ele mesmo faria isso. Eu não tive outra opção, não tinha condições financeiras de criar sozinha e ele também não iria ajudar”, relata. A situação de Maria é comum a diversas mulheres, de todas as religiões, faixas etárias e classe social.

A doutora em psicologia explica que a criminalização do aborto não diminui a sua prática, pelo contrário, põe em risco a vida da mulher, especialmente as negras. “As mulheres negras abortam mais porque elas engravidam mais, o racismo faz com que essas mulheres tenham dificuldade de acesso ao planejamento reprodutivo e ao planejamento familiar. Elas fazem o aborto mais tarde, por uma serie de motivos, porque não conseguiram confirmar a gestação, por violência doméstica entre outros”, avalia Nathália.

Dentre as diversas violências que as mulheres negras e sertanejas sofrem uma das que mais se destaca é o mito do fim da pobreza através da esterilização. Em sua pesquisa de campo no sertão pernambucano, Nathália evidenciou o ligamento das trompas como algo natural na vida das mulheres. “O serviço de saúde oferece a esterilização dessas mulheres como se fosse método contraceptivo, e não presta informação de qualidade a elas sobre o atendimento, só diz melhor ligar do que ficar fazendo filho por aí”, narra.

O Ministério da Saúde aponta que o Sistema Único de Saúde atende cerca de um milhão de abortos por ano. Como esse dado não leva em consideração os subnotificados, Nathália Diórgenes estipula que a informação correta deva ser pelo menos o dobro. Já a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2010 e 2016 indica que uma entre quatro mulheres fez ou fará aborto até completar 40 anos de idade.

Gleyce Marques | Edição: Lis Lemos